Se quereis que eu creia em Deus, cumpre que me façais tocá-lo.
Traduzido por J. Guinsburg.
Se trata de um influente texto do autor que acaba lhe rendendo uma condenção e aprisionamento. A obra pretende tratar de questões relativas ao empirismo e os sentidos através da recontagem de uma interação com o cego de Puiseaux e da discussão da vida do, também cego, matemático Nicholas Saunderson; argumentando, no processo, contra os filósofos de sua época (Locke, Molineaux, Condillac) em relação às suas percepções sobre a nossa aquisição de conhecimento por via dos sentidos.
Vale ressaltar que Diderot se usa bastante do veículo literário para expor suas ideias, uma medida possivelmente adotada tanto para sua autopreservação quanto por gosto apenas, e há momentos que se faz de Saunderson para expor sua filosofia. Há chance do mesmo ocorrer com o cego Puiseaux.
A leitura da carta nos revela a possibilidade de dividí-la em três partes principais:
Ah, senhora!, como a moral dos cegos é diferente da nossa!, como a de um surdo diferiria ainda da de um cego!, e como um ser que contasse um sentido a mais que nós acharia nossa moral imperfeita, para não dizer coisa pior!
Durante toda carta, é constantemente reafirmada a ação dos sentidos em toda a nossa percepção de mundo, sendo recorrentemente enfatizada a importância da experimentação para aquisição de saber; ainda mais, e por consequência da fundamental ação do sensível sobre a nossa percepção de mundo — sobre a própria criação do nosso mundo — aqueles com menos ou mais sentidos possuem variadas noções de moralidade, sendo que, quanto mais sentidos, mais perfeita também seria a nossa moral. Porém, segue Diderot, apenas ter os sentidos de pouco serve, precisamos ter um domínio sobre eles adquirido mediante um treinamento (ou seja, experimentação com o mesmo) potencialmente, mas não necessariamente, auxiliado pelos outros sentidos.
Para exemplicar, Diderot se sustenta muito em sua exemplificação do cego. Esse, por vias de sua condição, não consegue conceber o mundo como os que enxergam, já que seu contato com o mesmo é pautado pelo tato em vez dos olhos. Sendo assim, há partes do mundo que compreende de outras maneiras — o enxergar para o cego de Puiseaux é colocar as coisas em relevo - e outras que o são completamente alheias (tal como as cores).
Ademais, de nota, Diderot trata os símbolos que usamos para o diálogo com nossos semelhantes como sendo o método para expor as aquisições dos sentidos. Temos tanto a escrita cotidiana quanto a escrita musical, mas Diderot, antecipando futuras invenções e num passo de simpatia para com os cegos-surdos-mudos, salienta a necessidade de um meio para se comunicar com os mesmos.
[...] e que se remontássemos ao nascimento das coisas e dos tempos, e se sentíssemos a matéria mover-se e o caos desembrulhar-se, reencontraríamos uma multidão de seres informes para alguns seres bem organizados.
A utilização da literatura para filosofar é marcante na obra de Diderot e dessa proṕria carta. Entretanto, especificamente nesse trecho, Diderot não apenas se faz de um Saunderson inventado que, próximo a morte, discute sobre a existência de Deus, como também atribui seu conto a um trablho fictício. Agora, se opta pelo artifício por motivos de autopreservação ou artíticos (ou ainda uma mistura de ambos), não se pode ter certeza.
Seja qual for sua motivação, Saunderson é usado como expositor do materialismo organicista de Diderot, defendendo a concepção de uma natureza caótica num eterno estado de mutação, dotada apenas de breves momentos de aparente ordem. Uma visão de mundo com tons certamente evolucionistas, muito a frente de sua época.
Apesar de não ser diretamente secular — afinal, Saunderson é retratado como um moribundo desesperado —, ainda se trata de um diálogo fortemente ateísta, não apenas pela filosofia biológica de Diderot já ter cores de secularidade, mas também pelos ataques orientados às atitudes dos religiososo da época, especialmente o egocentrismo desses. Por exemplo, Diderto escreve:
Um fenômeno está, a nosso ver, acima do homem? Então dizemos de pronto: é obra de um Deus; nossa vaidade não se contenta com menos.
E ainda no mesmo paragráfo:
Perguntai a um indiano por que o mundo permanece suspenso nos ares e ele vos responderá que é transportado sobre o dorso de um elefante; e o elefante sobre o que se apoiará? Sobre uma tartaruga; e a tartaruga, quem a sustentará? Este indiano vos causa dó e poder- se-ia dizer-vos como a ele: Senhor Holmes meu amigo, confessai primeiro vossa ignorância, e dispensai-me a graça do elefante e da tartaruga”.
Onde Diderot, num salto antropológico, equaciona a religião cristã à de um indígena fictício, afim de demonstrar a fundamental indiferença entre elas.
Se substituirmos um geômetra ao metafísico, Saunderson a Locke, ele nos dirá como o outro que, a crer em seus olhos, de duas figuras que enxerga, aquela é a que denominava quadrado é esta a que denominava círculo [...]
Nesta seção, Diderot discorre sobre um problema levantado originalmente por Molineaux: cegos de nascença, que recuperam a visão, conseguem distinguir um cubo de uma esfera?
Dessa pergunta, e da discussão que a circunda vinda de Molineaux e Condillac, Diderot abstrai duas outras questões essenciais:
Diderot, confrontado com a primeira questão, concebe os sentidos como sendo sujeitos a aprendizado, aproximando-os à ferramentas das quais, com prática, adquirimos habilidade de aplicação. A cega, portanto, requisitaria de algum tempo de adequação da nova visão, não apenas por motivos biológicos, mas também por razões de compreensão, no caso, a compreensão de ver e saber interpretar. Um processo qual, Diderot enfatiza, poder ser facilitado por outros sentidos, porém não requer a ajuda deles.
Agora, respondendo a segunda questão, Diderot, ao contrário do próprio Molineaux e de Condillac, concebe o ex-cego como capaz de distinguir esses objetos, desde que ele tenha tanto domínio filosófico (aqui concordando com Condillac) quanto da geometria.
Para fim de explicação, é necessário lembrar que Diderot imagina um real experimento tomando forma, portanto, para que esse seja crível, é preciso que o agente observado seja capaz de discorrer bem sobre suas tentativas de distinção, sendo aqui onde figuraria o saber de filosofia. Em contrapartida, o saber geométrico é necessário para sanar outro problema: a ex-cega, apesar de talvez conseguir dinstinguir os objetos a distância por meio de sua experiência com o tato, não tem total certeza se, ao tocá-los, sua análise permanecerá correta (pois esses mesmos objetos, a distância, só o parecem ser o que são para ela). A resolução aqui está na experiência em tratar de figuras, enquanto geômetra, através do tato e explicá-las para outros com visão. Por exemplo, Saunderson (que Diderot novamente usa para ilustração), seria capaz de distinção devido seu trabalho como geômetra, já que tinha tanto prática para compreender esses objetos por meio do toque, quanto também experiência em explicar esses objetos para terceiros que o validavam. Portanto, sua distinção estava garantida de não meramente parecer, mas sim de realmente ser.
Diderot é um autor de uma escrita muito clara (de início, o único obstáculo foi se acostumar com o dialeto antigo) e ocasionalmente cômica, além de, em diversas passagens, demonstrar considerável humildade em frente a o desconhecimento geral que temos por sobre as cosias.
Algumas coisas me saltaram durante a leitura dessa carta: o quão progressivas são as visões de Diderot e sua irreligiosidade — especialmente levando em consideração seu contexto histórico do Antigo Regime Francês, onde o policiamento das ideias era estritamente aplicado (motivo que talvez também o tenha feito adotar o gênero literário para expor suas ideias).
Estava nitidamente a frente de muitos de seus contemporâneos, notavelmente expondo concepções evolucionistas de mundo, antecedendo Darwin por um século; se engajando numa proto-antropologia no momento que equaciona as religiões ocidentais com as demais existentes; e sugerindo um meio de se ensinar os cegos-surdos-mudos a se comunicar com o resto da sociedade, um movimento que deve ser ressaltado, pois, mesmo que talvez acidentalmente e por mero biproduto da carta, Diderot acaba por defender os direitos das pessoas com defiência.